Sandman: sonhar é preciso para encher a barriga

Uma dessas coisas que todo mundo diz ser verdade e que, no final das contas, não é bem assim, feito bebida láctea, é que o livro é sempre superior ao filme. Existem exemplos em quantidade o suficiente, para que ninguém possa evocar a máxima de que a exceção comprova a regra, de obras audiovisuais iguais ou superiores à obra literária que estão adaptando: Tubarão, O Poderoso Chefão I & II, Apocalipse Now, Gigi, …E o Vento Levou, Fahrenheit 451, Blade Runner (especialmente a primeira versão com narração em off), A Bela e a Fera (o desenho da Disney e a versão de Jean Cocteau), A Laranja Mecânica, O Iluminado, Blow up: depois daquele beijo, A viagem do Capitão Tornado, Psicose, Trainspotting, The Boys e assim vai. Não vou listar adaptações de Shakespeare (e muitas outras peças), pois foram criadas no meio literário já para serem transpostas para o meio teatral.

Há uma tradição supersticiosa de que há um Adão para tudo que é criado e que suas derivações seriam sempre inferiores, o que é uma tolice, já que Eva está aí para provar o contrário. Assim como Eva, as adaptações têm de ter um tempero extra, algo somente dela, e que, se trazem elementos de Adão, também apresentam sua autonomia e existem por si só. Quando a adaptação falha nesse sentido (e falhar no campo da arte nem sempre é ruim. Não tentar é o maior pecado, viva a serpente), temos obras que parecem justificar a sabedoria popular. Porque a audiência reconhece a obra original e não vê algo extra, algo que foi provocado pelos primeiros contatos com aquela obra, e concluí: o original era superior e sempre será.

Sandman, a série da Netflix, trilha esse caminho. A adaptação dos primeiros capítulos dos quadrinhos Sandman foi feita com cuidado, enxugada e cozida no ponto. Visualmente não é especial (bem provável que o dinheiro não permitisse algo além), mas não é falha. Ou seja, na medida. O roteiro controla o ritmo da série, lento e deliberado, preserva o diálogo para os momentos certos e apresenta o suficiente de cada personagem para que, mesmos os que passam rapidamente, não pareçam estar ali apenas para um aperitivo. Diante de tantas adaptações ruins que os quadrinhos textualmente mais elaborados foram submetidos (também conhecido como a buchada de Alan Moore), dos garotos enxaquecas (os fãs) e da visão de que fantasia funciona como ação (obrigado por nada Peter Jackson), os responsáveis pela série da Netflix apostaram na segurança. É compreensível, mas gera outro problema.


Sandman, o material original, é rico. Não apenas a obra em si, mas também o seu impacto cultural. É o tipo de material que permite (porque a Musa da Arte é sempre a própria Arte) uma criação potencialmente rica. Mas para isso, tem de sair do feijão com arroz, tentar um tempero. Quem sabe apimentar as coisas. Importune os italianos e faça pizza de abacaxi.

E aí que Sandman falha, ou deixa de ter sucesso. Porque faz exatamente o que se propôs. Com freios, usa o que há de melhor da fonte. A Morte continua uma fofa e traz uma mensagem sobre a vida. A sátira aos fãs e a cultura consumista americana continua existindo na convenção de… (spoiler, não é de cereais). A defesa ao sonhar e a imaginação está ali. As referências literárias? Todas presentes, certo Chesterton? Tudo funcionou e Gaiman aproveitou para fermentar (talvez uma colher de sopa a mais) a defesa à diversidade para além do que ele não pensou ou não podia fazer nos anos 90. Nunca Sandman foi tão afro e gay (talvez fora de lugar algumas vezes, mas posso entender a vontade dele mostrar dois dedos do meio e não apenas um para esse povo). Isso não é um problema, porque a diversidade sempre esteve presente no discurso da série e de Neil Gaiman.

Mas essa é apenas uma pimenta biquinho. Vai funcionar apenas para atiçar a mentalidade twittera de polêmicas. Não arde a língua para valer. Palatável.

Vivemos em um mundo pós-Twin Peaks: o retorno. A questões levantadas pela série de David Lynch já deixam marcas. Deixaram em Damon Lindelof, que ao adaptar Watchmen, tomou riscos. Falhou, mas como dissemos, ainda bem que tentou. Deixou marcas em Noah Hawley, que com LEGION, foi além e, aos poucos, a série tem se tornado a principal referências das adaptações de quadrinhos para televisão (as da Marvel/Disney, por exemplo, já sabem o que é ir além e podem seguir sem riscos). Essas séries já deram passos, que vamos admitir, são arriscados demais para a Netflix, que sempre jogou com segurança.

Gaiman tem méritos. Ele é um escritor de fantasia muito superior aos criadores de dragões e bruxinhos (ou escritor de forma geral, gêneros são fluídos, de qualquer forma). Evita a armadilha da nostalgia pela nostalgia. Seria fácil manter a série nos anos 80. Seria fácil negociar com a DC (com a confusão da DC), o uso de mais propriedades da editora e até colocar os easter eggs espalhados pela série. Ele evita tudo isso. As referências que aparecem são parte da textura narrativa como a descrição de um raio de sol no texto de Proust. O crítico literário James Woods aprovaria. Sandman é uma série madura, que pertence ao século XXI (na medida do possível, nada de E-book na Livraria de Lucienne).

Existem momentos ricos e tensos, especialmente quando a série é obrigada a apresentar algo para substituir o que existe nos quadrinhos ou deseja fazer alguma declaração política, mas também momentos de excesso de exposição e explicações. Se não fosse a Cancelaflix, ficaria com a impressão de que uma base sólida para a adaptação das outras histórias e alguma criação foi levada ao forno. Sem deixar entornar o caldo como aconteceu com American Gods.

É uma refeição do dia a dia, mas Chef Gaiman, vamos sonhar com um banquete. Algo muito mais nutritivo. Não é pelos fãs – que bom que você não pensou em atender qualquer demanda – é pela arte mesmo. Você é um cara legal e conhece Keats. Beauty is truth, truth is beauty.

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