Os Anéis do poder: uma Amazon para todos governar

Esta história começa com a Amazon.

A empresa tem um histórico de apostar nas mudanças causadas pelas revoluções tecnológicas sem valorizar os elementos humanos. Basta dizer que, apesar de ter conseguido lucrar durante o período mais grave da pandemia, foram registrados vários protestos de seus trabalhadores pela falta de suporte e excesso de trabalhado durante o período.

Os Anéis do poder parece repetir essa mentalidade: apesar de ser a série de televisão mais cara da história, o dinheiro não foi investido na contratação de atores, roteiristas e diretores. O resultado: o roteiro é irregular, com diálogos e personagens simplificados e falta coesão entre as partes da obra. Sabemos para onde o dinheiro foi: visualmente a série é magnifica, reproduzindo cenários detalhados e cuidando dos detalhes e a aparência dos personagens. Não é muito diferente dos filmes de Peter Jackson e há uma razão prática para que a série se aproxime mais das duas trilogias. Não apenas pelo fato de os filmes serem mais recentes (e da implicação óbvia: são mais conhecidos do que os livros), mas também pelo fato da Amazon não possuir direitos sobre toda a obra de Tolkien, e sim do material basicamente citado em O hobbit e O Senhor dos Anéis.

Tanto o filme quanto a série operam dentro da estética de blockbuster hollywoodiana, que favorece os efeitos especiais e as cenas de ações. Uma palavra usada para descrever é “épico”, mas tem sido usada apenas no sentido de grandeza (já que as narrativas épicas eram, de maneira geral, longas) e não da grandiosidade (os feitos de seus heróis). É discutível se a narrativa do livro O Senhor dos Anéis é épica, mas é claro que nos filmes (especialmente O Senhor dos Anéis) existem mais elementos para serem explorados dentro desta premissa hollywoodiana do que Os Anéis do Poder. A criação do Um Anel não é uma história de aventuras ação, mas de manipulação. É apenas depois da criação Um Anel, com a formação de uma aliança entre Anões, Humanos e Elfos para enfrentar Sauron que isso muda.

A série se dividiu em quatro núcleos distintos inclusive no estilo: Galadriel e Halbrand; Elrond e Durin; Nori e Gandalf; Arondyn e Bronwyr. Apenas as duas primeiras são realmente sobre os anéis de poder. Arondyn e Bronwyr acabam sendo absorvidos pela primeira narrativa e Nori e Gandalf apenas se integra na narrativa geral como uma tentativa de gerar dúvidas sobre a verdadeira identidade de Sauron. Há uma aposta em criar um o mistério e esse jogo de tentar ludibriar o espectador acabou provocando um esvaziamento da narrativa, que afetou os personagens Galadriel e Sauron.

É evidente que a narrativa mais importante é a que envolve Galadriel e Halbrand e nela se concentram os maiores problemas da série, por isso podemos começar por onde esses problemas não são tão fortes. Ainda assim é interessante notar que toda a série sofreu com a administração do tempo e espaço da narrativa, jogando o mundo de Tolkien (pelo qual eles pagaram pelos direitos autorais) pelo ralo. Oceanos têm tamanho de piscina, viagens são instantâneas e mesmo quando a série mostra que existem essas grandes distâncias (mostrando os mapas e nos diálogos dos personagens), não há uma consequência dessas distâncias. Preparem-se para os SPOILERS.

Nori e Gandalf

A falta de consistência nos diálogos dos harfoots, um tipo de hobbit, é o maior problema desta parte, além da presença misteriosa e sem muito impacto dos seguidores de Sauron. De maneira geral, deveria ser claro que o estranho era Gandalf (ou no máximo Saruman) e a única dúvida seria levantada pelo constante uso de elementos de fogo. O estilo deste arco é mais infantil, mas isso não é um problema. O Hobbit é uma obra infantil assim como o começo do Senhor dos Anéis, justamente a parte que explora a relação de Gandalf com o condado. Tolkien nunca escreveu sobre os primeiros encontros entre Gandalf e os hobbits, portanto havia espaço para ser explorado.

Arondyn e Bronwyr

Se Tolkien não havia escrito sobre os primeiros dias de Gandalf e os harfoots, menos ainda escreveu sobre o que os orcs faziam quando não estavam em guerra e sobre os homens do sul. Havia muito potencial e todos os personagens apresentados nesse arco foram criados pela série. Essa parte da narrativa começa bem, (apesar do lugar comum do romance entre Arondyn e Bronwyr e as cenas de combate mais adequadas para um filme de Jack Chan), mas logo perde vigor, na medida em que Adar, o líder dos Orcs, passa a ser usado apenas para alimentar dúvidas sobre a verdadeira identidade de Sauron. O movimento sindical orc poderia trazer elementos diferentes dos explorados por Tolkien para a série, mas foram sepultados quando Galadriel vomita um discurso racista ao confrontar Adar. Não foram as cinzas do vulcão, mas incapacidade da série em explorar ou desenvolver os problemas (que existem na escrita de Tolkien) sobre a representação das diferentes raças (em um mundo em que existem diferentes raças) que sepultou a chance de criar qualquer simpatia por esses personagens.

Elrond e Durin

Essa, apesar do jeito Bill Murray de Gil-Galad, é a parte que melhor funcionou. Ainda que anões não sejam personagens cômicos e a série tenha repetido com Elrond e Durin o humor usado pelo filme com Legolas e Gimli, vermos pela primeira vez a sociedade anão, dentro da montanha que um dia será Moira. Havia até certa tensão, pois todo mundo sabe que os anões cavariam fundo demais (e a tensão acaba dissolvida para uma desnecessária aparição do Balrog, que não faz parte da narrativa neste momento).

Galadriel e Halbrand

É razoável esperar que todos lendo este texto (propositadamente longo, para dar tempo de desistir) sabem que Halbrand é Sauron. Portanto vamos direto para o principal problema da série: propaganda enganosa. A Amazon tentou vender Sauron como um grande manipulador e Galadriel como a personagem feminina forte da série. Mentiu em ambas.

Galadriel era uma escolha certa. Apesar de muito importante, Tolkien não escrevera muito sobre ela. Era citada tanto pela capacidade liderança e sabedoria, quanto pelo poder (que nem sempre precisar ser capacidade militar, ainda que seja sugerido que ela era capaz de feitos físicos notáveis). A série decidiu o realçar esse lado guerreiro da personagem, o que não é um problema. O problema está no resto.

Há um filme com Mandy Moore, Curtindo a Liberdade, em que ela faz o papel da filha do presidente dos Estados Unidos e, aos 18 anos, foge dos seguranças, se envolve com um jovem, tem várias aventuras e volta para casa transformada da adolescente rebelde em uma adulta independente, mas responsável. É uma comédia romântica e você encontrará diversos filmes com essa premissa básica. Existe mesmo um gênero narrativo deste a antiguidade clássica, mostrando as aventuras de jovens que terminam em amadurecimento. É claro que é um clichê romântico e Galadriel era a pessoa mais velha viva na série. Não uma jovem adolescente. Isso não é purismo, pois essa informação está na série da Amazon: Galadriel está em Valinor primeiro capítulo e na pintura antiga que Elendil mostra, por exemplo.

Essa é também a mesma premissa, por exemplo, do filme da Mulher-Maravilha, a diferença é que ao invés de Steve Trevor, ela está com Sauron. A intenção de “shipar” o casal é clara. A propaganda enganosa não está nela ser apenas mais uma princesa guerreira. Está no fato que ela, apesar da certeza da sua “missão”, aceita que Gil-Galad a mande para Valinor, que Elrond assuma a sua “missão” e obedece aos conselhos de Halbrand. Pior acontece na cena final dos dois.

Agora precisamos buscar a Galadriel do filme (ou do livro). Frodo oferece o Um Anel e ela resiste à tentação, dizendo ter passado em um teste, podendo acabar com autoexílio e voltar para Valinor. Na série, ela é tentada pelo próprio Sauron. É claro que é um teste mais difícil resistir ao Sauron do que resistir à uma parcela do poder dele contida no Um Anel. Ela já passou no teste. Mas será? A série coloca nas bocas de Sauron as palavras que Galadriel usaria para recusar a oferta de Frodo. Agora, quando ela expressar a sua autonomia e vontade, ela estará usando palavras de quem tentava escravizá-la. Já seria ruim para um personagem de qualquer gênero ter sua voz usurpada por um roteirista preocupado em satisfazer fanboys com easter eggs, mas essa é a personagem promovida como a personagem feminina de destaque da série.

Assim, parece irrelevante o fato de Sauron ser vendido como um grande manipulador também ser uma mentira. Afinal, ele é um Forest Gump. Por acaso, está nos destroços no mesmo dia que por acaso Galadriel pula no oceano. Por acaso, está usando um símbolo heráldico de uma linhagem real humana que não tem nenhum valor para ele (é tão antiga que apenas Galadriel reconhece e, contraditoriamente, Galadriel descobre que foi extinta em um velho manuscrito). Por acaso, sobrevive à erupção do vulcão e por acaso é levado até um Celembribor quando ele estava preocupado com o apagão élfico. É apenas neste momento que Sauron tem um plano. Tudo que ele fez antes, foi sem qualquer objetivo. E a primeira coisa que ele tenta fazer com um objetivo é manipular Galadriel e falha. No fim, Sauron não manipulou ninguém e nem teve sucesso com seus planos, porque estava preso ao papel de “crush”.

E sim, tudo isso acontece no último episódio. Falou-se muito sobre a série ser lenta, mas discordo. O ritmo foi frenético. O problema foi a falta de coesão entre as partes e a maioria das coisas que aconteciam não tinham grande importância para a história a ser contada. Quando chegaram no último episódio, foram obrigados despejar uma série de acontecimentos, sem muita preparação, e pronto. Estavam ali os anéis.

Não é preciso ser fiel ao material original (fidelidade, por si, é vazia), mas é preciso saber para que serve o seu material. Uma construção mitológica precisa de uma base histórica e geográfica para ter força. Galadriel poderia prover (Peter Jackson a usou como narradora por isso) tal força. Não tratar um oceano como uma banheira ou fazer viagens instantâneas entre reinos que são “isolados” em um dia, ajudam para isso. Saber que uma comédia romântica adolescente não pode ser usada para contar uma trama de intriga seria útil também.

Respeitar o talento humano ajuda, mas aí não seria Amazon.

Originalmente publicado no Bar Princesa.

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