Manto e Adaga: adaptar para quê?

Marvel's "Cloak & Dagger" - Trailer #1
(screen grab) CR: Marvel Entertainment

Uma das reações mais comuns dos fãs de livros e quadrinhos é desejar que essa ou aquela história ou personagem acabe sendo adaptada para o cinema. O mercado hoje é tão especializado, que autores como Stephen King já escrevem suas obras preparando-as para uma possível adaptação cinematográfica. Isso influencia a escolha de cenas, personagens e ritmo. Mas e quando não é assim?

Quando eu li Sandman – um exemplo – ela me satisfez plenamente como quadrinhos. Primeiro as capas de Dave Mckean, depois a arte de Sam Keith, P.Craig Russell, Charles Vess, Kelley Jones e alguns outros que fizeram parte da equipe comandada por Neil Gaiman. Eu sei que ele também trabalha com roteiros para o audiovisual, mas existem certas escolhas que devem ter sido feitas influenciadas pelo meio dos quadrinhos e a sua linguagem específica. Existem palavras que ele deve ter suprimido por saber, ou até mesmo desejar, que elas existissem nos traços de um dos seus parceiros. Se um dia uma adaptação de Sandman acontecer, eu prefiro que a série saia de um dos livros da biblioteca dos livros jamais escritos de Lucien, com o nome de “Histórias nunca contadas de Sandman” e não seja uma mera transposição do personagem para as telas. Eu não preciso de efeitos gráficos para substituir o que os traços de Russell na história Ramadan me fizeram imaginar.

Eu não sou contras adaptações, isso seria ser contra o principal aspecto de toda arte: arte inspira arte. Shakespeare utilizou de histórias da literatura, das tradições orais, das crônicas históricas, de trechos de outros poetas, da mitologia para compor suas peças. São quase todas elas adaptações para o drama, afinal de contas, e o cinema nasceu “sugando” as fontes incansavelmente. Isso não é um problema. Mas, como os pioneiros do cinema descobriram, não existe adaptação perfeita nem de peças, de livros ou mesmo quadrinhos. Isso é ótimo. Assim, o Drácula virou o Nosferatu careca e com cara de rato.

Uma das principais críticas que faço ao Watchmen de Zack Snyder é que ele adaptou o quadrinho de Alan Moore (sacrilégio!) e tentou ser fiel demais. Não é uma questão de mudar o roteiro (uma coisa que não tem tanta importância e que ele foi infeliz ao alterar o final), mas a linguagem visual e as escolhas foram basicamente as mesmas. O único momento de ousadia foi nos créditos de abertura, quando foi obrigado a resumir o passado daquele universo e que é a única cena do filme que consegui rever.

Ainda que exista algum prazer e emoção em reconhecer com precisão uma cena ou outra que fez parte das minhas leituras passadas, uma adaptação de quadrinhos tem de sair da caixa. Parte da qualidade da série Manto & Adaga vem disso: até o momento, cinco episódios de desenvolvimento lento  e meticuloso dos personagens e apenas  sugestões da existência Manto e Adaga. Não que eles não estejam ali: estão e não estão. Tyrone e Tandy são os personagens dos quadrinhos e são algo mais. Não estou falando da diferença da origem dos dois personagens e sim da profundidade dramática que eles adquiriram. É algo muitas vezes necessário, pois super-heróis de quadrinhos, em geral, são personagens superficiais, pois, apesar da máscara, está na cara o que eles são e representam.

A dependência psicológica de Tyrone por Tandy não está ali, ele tem uma personalidade própria, ainda que tímido, que cresce ao entrar em contato com ela, mas que é autossuficiente. Ao mesmo tempo em que ela deixa de ser apenas uma fonte de luz e coragem, ela também precisa do impulso e da proteção de Tyrone (proteção que nada tem a ver com perigo, mas com a ausência de calor humano). A dualidade e o balanço entre os dois cria uma dinâmica que amplia as relações simbolizadas pelos poderes de ambos.

Falando dos poderes, a interpretação, não imaginada pelos quadrinhos, em que eles têm visões sobre os personagens, bem além da mera reação física de frio quando alguém é envolvido pelas trevas do Manto ou certo êxtase quando é alvo das adagas de Tandy, é um grande achado para a narrativa audiovisual.

Em suma, Manto e Adaga é acrescenta algo aos quadrinhos, o que faz da adaptação algo interessante e meio contraditório: é como se um marido traísse a esposa com ela própria. Essa é uma pulada de cerca que tem valido à pena.

João Camilo de Oliveira Torres – Quem quiser me ouvir falando de séries e filmes baseados em HQs, basta clicar aqui e acompanhar o X-POILERS!



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