Pobres Criaturas: aquele comichão entre as pernas

A personagem principal se chama Belle, é um conto tão antigo quanto o tempo, mas não é mais uma versão de A Bela e a Fera. Pobres Criaturas é baseado em um livro de Alasdair Gray: Poor Things: Episodes from the Early Life of Archibald McCandless MD, Scottish Public Health Officer e qualquer semelhança com Frankenstein não é mera coincidência.


De tempos em tempos surgem cineastas que, no mais puro espírito barroco, fazem filmes em que somos inundados pela riqueza de cores (e se for um filme em preto e branco, descobrimos quantos tons de preto e branco podem existir) e detalhes cênicos, que transformam o realismo em fantasia: Tim Burton (quando era divertido), Terry Gilliam, Peter Greenaway ou Del Toro. É assim em Pobres Criaturas do diretor Yorgos Lanthimos.  É conveniente compararmos com Burton, especialmente o Burton de Edward Mãos de Tesoura, pois ambos filmes são entrelaçados pelo Frankenstein de Mary Shelley.

A diferença talvez seja imperceptível para o público brasileiro, que basicamente desconhece a obra do escocês Alasdair Gray. No livro, a obra de Mary é usada para um jogo de metalinguagem, em que a narrativa romântica é subvertida por uma segunda narrativa, do ponto de vista de Bella, que coloca em dúvida a veracidade dos eventos fantásticos que o marido, Archibakd (Max no filme) McCandles. No filme, o artifício é reforçado pela reconstrução steampunk de cenários reais como Lisboa e Alexandria e não há outro contraponto em que duvidamos da realidade da história para acreditarmos em sua verdade.


Assim, o filme subverte Frankenstein. O cientista (Willem Dafoe) é que se parece com a visão usual da criatura. Ao contrário do cientista da novela, um pai ausente, ele é super-presente e cegado pela lógica científica. Talvez o elemento mais fantástico da novela seja a forma inverossímil como se dá a educação da criatura, que, autodidata, faz uso de um dos poemas mais complexos da língua inglesa, Paradise Lost de John Milton. A educação de Bella passa a ser o ponto de construção da narrativa, que transforma a história (e revela a origem do Frankenstein) em uma modernização do mito de Pigmalião.


Bella tem o corpoadulto e a mente infantil e essa contradição acelera seu desenvolvimento, transformando o filme em um romance de formação, em que a jovem viaja por diferentes lugares a fim de conhecer o mundo, ter experiências e, existencialmente, se conhecer. Esse tipo de romance é típico de sátiras como O Asno de Ouro de Apuleio ou Cândido de Voltaire e o filme faz bom uso do talento para pantomima de Emma Stone e Mark Ruffalo para conduzir a história. É quando o tom sombrio se afasta e a obra ganha cores, de tal forma, que os olhos de Emma Stone, que parecem ter desenhados por Al Hirschfeld, são eclipsados.


O amadurecimento de Bella tem uma mensagem que é diferente da mensagem sobre a responsabilidade pela educação dos filhos presente na obra de Mary Shelley. Mesmo que Bella perca tempo discutindo filosofia (ela cita Diógenes para um proclamado cínico na cena mais bonita do filme), a mensagem é sobre sua autonomia e, portanto, aautonomia de todas as mulheres e a forma de opressão usada pela sociedade é a repressão do seu desejo sexual. Se fosse uma fábula de Esopo amoral seria: deixe ela foder em paz e, mesmo que o filme esboce uma crítica social, é, no final das contas, algo mais individual e freudiano. Por que Lisboa e Hollywood é bonita demais para Marx. 


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