Changeling: Caminhos

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Arte: Leif Jones (Freeholds and Hidden Glens)

Ele era alto, magro, mas sem ser esquelético ou frágil. Olhos muito negros, um sorriso fácil, cabelos lisos e macios. Falava devagar, tranqüilamente, a voz macia, quase um sussurro, pausada. Andava calmamente, sempre sem pressa de chegar a nenhum lugar. Era capaz de permanecia quieto, calado, observando a todos por horas. Jamais parecia estar nervoso, agitado ou inquieto. Sorrindo, sempre sorrindo.

Ela era tímida, muito tímida, se sentia desconfortável em meio a muitas pessoas. Baixa, se sentia frágil no meio de estranhos. Os olhos pequenos e negros pareciam jamais estarem focados em nada ao redor dela. O cabelo era curto e negro, discreto. Parecia sempre andar encolhida, como se desejasse passar por debaixo das pessoas, sem que elas a vissem. Nunca parecia estar satisfeita ou alegre. Falava muito pouco e pouco prestava atenção naqueles ao redor dela. O rosto estava sempre tenso, lábios finos sempre apertados.

Ele gostava de contar histórias de todos os tipos e gostava de escutá-las também.

Ela adorava o som da própria voz e passava o dia inteiro pensando em como evitar o mundo, em como encontrar um mundo melhor para viver.

Ele acreditava em mundo melhor, mais interessante.

Ela achava que jamais veria este mundo.

Ele se sentia frustado por não saber como procurar este mundo ou aonde achá-lo.

Ela se fechava cada vez mais, chamava-se de idiota sonhadora.

Ele vivia mudando de endereço, cansado dos locais que morava, em busca de mais experiências.

Ela era mais jovem, nada conhecia do mundo, jamais tinha saído de sua casa e feito nada além de estudar.

Um dia eles se encontraram…

Foi um acidente. Não havia outra forma disto acontecer. Eles pertenciam a realidades diferentes. Mas houve uma noite que ela acordou, tivera um estranho sonho e não se lembrava de detalhes. Levantou-se toda suada, se sentido mal. Correu e procurou por pelas pílulas que tomava quando estava nervosa. E ela estava muito nervosa aquela semana. Era uma semana cheia de exames. Ela tinha de estudar, estudar bastante. E mais, ela estudaria com Ralph…

E quem seria Ralph. Era um rapaz culto e inteligente. Sempre andando com livros e fazendo citações. Não era como os outros: ele era retraído. Inteligente demais para ser mais um dos rapazes. Crítico, ele era diferente… E ela, achava isto incrível… Olhava para ele e adorava como ele parecia gostar de ensiná-la. Como ele gostava dela como platéia… Como ele sorria e fazia alguma citação interessante. Ela sabia que ele poderia fazer toda a diferença para ela. Devia só conseguir estudar, terminar tudo e ter coragem de falar com ele… Ela se mostraria inteligente, interessada e adoraria ter todo este tempo para admirá-lo e vê-lo feliz…

Ela estava então no máximo do nervosismo. Não se lembrar do sonho parecia fazê-la piorar. A cabeça doía, a temperatura do corpo subia, ela não sentia vontade de se alimentar, achava que iria vomitar tudo. Mas estava acostumada com aquilo. No íntimo, aquela era a reação que ela achava que deveria ter… Que merecia ter… Mas se distraíra e estava sem pílulas, precisava delas para conseguir dormir em paz e ir para a aula no dia seguinte… E ela odiava isto…

Ela se levantou correndo, trocou de roupa. Colocando uma camisa longa e preta e uma saia também preta, calçou um tênis preto e saiu correndo do prédio, tentando fazer o mínimo de barulho possível.

Ele vivia durante a noite mesmo. Quando não estava trabalhando, o que evitava, passava as noites em claro, procurando por novos acontecimentos. Saia andando, algumas vezes acompanhado, outras não, mas geralmente passava longe do campus, pois achava a universidade um local pouco interessante e se cansava rapidamente das conversas com as pessoas que por lá encontrava. Naquela noite tudo havia saído do seu controle. Ele resolvera ir à universidade, visitar o departamento de biologia ou o que fosse (não se lembrava bem disto e pouco se importava) e terminou perdido. Depois de muito zanzar, resolveu se sentar em uma praça e dormir um pouco. Acordara fazia poucos minutos, depois de um sonho muito estranho e olhava para o alto. Nuvens negras cobriam o céu, ameaçando uma chuva. Mas ele podia ver ainda um pedaço claro mostrando a lua brilhante. Olhou em volta e não viu nenhum movimento. Estivera dormindo por muito tempo… Ressabiado, se levantou e saiu andando. Tinha sede e fome. Lembrava-se de uma loja ou um posto (não se lembrava tão bem afinal de contas) pela qual passara perto dali e foi naquela direção.

Quando ele se aproximou, primeiras gotas de chuva começaram a cair, viu encostada na entrada da loja uma figura pequena, de cabelos negros, que parecia decepcionada. Aproximou-se e perguntou com um sorriso:

– Não tem ninguém aí para nos atender, não? – A menina se virou com um salto e um sorriso nervoso, um trovão caiu logo ao lado e chuva se transformou em uma tempestade.

Ela olhou para dentro da loja novamente. Sentia-se frustada, nunca havia saído durante a noite e concluíra que a loja funcionava durante toda à noite. Desejava ter prestado mais atenção nas conversas de outros estudantes. Um relâmpago iluminou todo o lugar por alguns minutos e ela se virou a tempo de ver um homem falando com ela. Não conseguiu ouvir bem o som da voz dele abafado pelo som do trovão. Nervosa, percebeu que a chuva se transformava em uma tempestade.

A cabeça doía tanto que não conseguia se preocupar com o estranho: apenas com a chuva e com que tanto necessitava:

– Está fechado… funciona durante a noite?… – conseguiu sussurrar para o rapaz.

Ele ficou olhando para ela, enquanto se abrigava debaixo do toldo da entrada da loja. Assim permaneceu por alguns minutos, impressionado com a expressão do rosto dela. Havia sinais de tristeza e fadiga marcando os traços suaves e delicados do rosto dela. Ele percebeu então que ela continuava olhando para ele e respondeu sorrindo:

-Eu não sou daqui, estava somente pensando em algo para comer.

Ela mexeu as mãos nervosamente, queria sair rápido de perto daquele estranho. Mas a tempestade estava mais forte, relâmpagos e trovões caíram com toda força. Ela se encolheu amedrontada e e olhou desiludida para dentro da loja.

Ele percebeu que ela se encolhia cada vez mais olhando para para dentro da loja com o rosto quase se colando na vitrine, passando por entre as barras de ferro.

– Você também está com fome?

Ela se voltou, meio confusa e completamente desconfiada, mas no rosto dele a expressão preocupada, sobrancelhas erguidas e o sorriso honesto.

-Não, eu estou com um pouco de dor de cabeça e meus remédios acabaram…- Ela disse balançando a cabeça de um lado para o outro lentamente.

Ele puxou para frente a bolsa que carregava. Sabia que tinha sempre alguns remédios dentro da bolsa, pílulas que carregava ao acaso da casa de amigos para casa de amigos.

– Segura aí, quem sabe eu tenha algo aqui – E começou a despejar parte do conteúdo da sua bolsa nas mãos dela.

Ela hesitou um pouco, mas estendeu as mãos para frente enquanto ele jogava nelas:

…Uma chave velha…

…Um livro “dicionário de sonhos…”.

…Uma fita de música…

…Três vidros de remédios…

…E finalmente um familiar vidro branco e azul. Ela sorriu e disse

– Não acredito, é exatamente o meu remédio.

Ele observa-a segurando as coisas que tirava da bolsa. Viu um tímido e rápido sorriso quando ela viu o livro dos sonhos e viu os olhos arregalarem quando ela reconheceu um vidro de remédio. Ouviu um comentário e viu um sorriso hesitante e olhos suplicantes. Ele pegou o vidro de remédio e leu o nome. Não se lembrava de tê-los colocado ali. Estendeu o vidro para ela e falou

– Toma, pode ficar com o vidro.

Ela pareceu desconfiada. Não era normal que as pessoas fossem gentis com estranhos. Algo deveria estar errado. Sentia que aquilo era impossível. Parecia melhor continuar com a dor de cabeça do que aceitar aquela improvável gentileza.

– Você tem certeza… você pode precisar afinal de contas. – Ao mesmo tempo, ela tentou devolver o remédio.

Ele franziu o cenho. Percebeu que ela estava desconfiando dele. Decidido, empurrou o remédio de volta e falou com um sorriso.

– Veja, ele nem aberto está. Minha… Mãe o comprou por engano e eu estava com ele para devolver na farmácia. Mas eu vivo esquecendo…

Ela estava atenta, pronta para responder qualquer tentativa de aproximação. Sentiu-se mal ao vê-lo franzir. Leu a data de validade do remédio. Não era novo, mas estava longe de expirar o limite. Ele falava a verdade sobre o remédio não estar aberto.

– Mas então, eu posso pagar por ele, para você não ter problemas com a sua mãe…” –  Ela disse com um sorriso ligeiro, satisfeita de encontrar uma forma de igualar aquela relação com uma simples operação comercial.

– Oh, você já está pagando se continuar sorrindo desse jeito…

E ela, sem nem mesmo se dar contado que fazia, surpresa pelo jeito casual que ele falara, sorriu e por alguns momentos o remédio nem se fez mais  necessário.

A chuva havia parado já fazia vários minutos, mas ela só voltara para o quarto agora. Ela estava cantarolando e olhou para a mão onde estava o remédio. Ela sorriu se lembrando de toda conversa e balançou a cabeça tentando fazer o sorriso fugir dos lábios. O que ela estava fazendo? No dia seguinte tinha de acordar cedo para estudar com Ralph. Sorriu novamente e voltou para a cama.

Ele andou pelas ruas até chegar na casa em que dormia. Sempre caminhava livremente quando os pensamentos pareciam estar soltos e flutuando. Nunca imaginara que sua conversa pudesse agradar uma pessoa daquele jeito. E sorriu, uma pessoa que parecia terrivelmente solitária. Então ele se sentou e pensou no nome dela…E descobrira que esquecera de perguntá-lo.

No dia seguinte ela foi novamente até a loja. Desta vez mais cedo. Ela o viu sentado na entrada, olhando para o alto distraidamente e se aproximou e para sentar-se ao lado. Havia sido um dia cansativo, por causa das poucas horas de sono que tivera, mas também havia sido um dia muito bom e toda hora que se lembrava da noite anterior começava a sorrir. As companheiras de quarto a olhavam de maneira estranha, Ralph comentara algo sobre isto quando estavam estudando (e no mesmo momento ela fechou a cara e resmungou que não fazia a mínima idéia do que ele estava falando e que estava com muita dor de cabeça) e mal se lembrava das aulas daquele dia.

Ele andou de um lado para o outro o dia inteiro. De repente, queria muito repetir a  noite anterior. Durante o dia, parecia que não havia nada para fazer e ele ficou irritado com o tédio. Ele a viu sentando e sorrindo puxou da bolsa o dicionário de sonhos…

E eles conversaram naquele dia e novamente no outro. Ele sempre voltava ali para encontrá-la e ela não parava de sorrir. Em um dos dias, ela pediu desculpas, mas não poderia continuar conversando até mais tarde, pois tinha muito que estudar. Ele sorriu e disse que não se importava. Ela sorriu de volta, mesmo se sentido um pouco culpada por ele estar lá por causa dela. E assim foi a primeira semana…

Na segunda semana, eles não se encontraram. Logo no Domingo, ele voltou até lá e nem sinal dela. Ele esperou por horas e horas e se sentia irritado, por que não havia perguntado nada sobre ela e não sabia como achá-la. Sentiu-se compelido a andar pelo campus para ver se conseguia na sorte encontrá-la, mas desistiu. Ele retornou para casa, cabisbaixo, sem saber o fazer e imaginando se ela esta doente novamente.

E assim foi em todos os dias daquela semana, até que na sexta, quando ele estava sentado no passeio, uma garota se aproximou dele. Ela abaixou e perguntou baixo:

– Oi… Olha, você está esperando alguém aqui? – diante do olhar interrogativo do rapaz, a garota continuou – Uma menina pequena, de cabelos e olhos pretos?

– Você a conhece? Alguma coisa errada com ela?

– Não. Quer dizer, Sim eu a conheço… Ela só está normal… É assim mesmo… Qual é o seu nome?

– John…

– Bom John, você pode me chamar de Kitsune – Ela sorriu – Uma raposa japonesa. – E sentou-se ao lado dele.

– Olá Kitsune. – Ele sorriu – Você é amiga dela?

– Oh, pode se dizer que eu sou a melhor amiga dela. Nós somos. E você, o que faz aqui todos esses dias? Mora por perto?

– Ah, mais ou menos. Mas eu estou aqui para conversar com ela.

– Só isso? E você tem vindo aqui durante a semana toda, mesmo quando se ela não apareceu também?

– Oh, sim. – Ele pausou por um momento – Tem algo errado com ela?

– Você está preocupado assim? Gosta dela este tanto? – Ele balançou a cabeça afirmativamente sem nem mesmo saber o que fazia – Mas você a conhece por tão pouco tempo…

– Lá isto é verdade. Mas é diferente. Eu não preciso de mais do que o tempo que tivemos para saber que gosto dela. E nem ela, por que eu sei que ela gosta de mim também…

– É, isto é verdade. Ela gosta de você sim. Ela se preocupa com você. Por isto ela me pediu para vir até aqui para falar com você.

– É?

– Ela sabe que você tem vindo aqui, esperado por ela, ela perguntou para mim durante todos esses dias…

– Todos os dias, quer dizer que ela tem vindo até aqui? Ela não está, tipo, doente?

– Ela está. Mas não é por causa disto. Ela me pediu para dizer que sente muito, muito mesmo. Mas ela não pode voltar aqui… Nunca mais. Ela sente muito…

– O quê? – John empalideceu. De repente, sentia muito frio – Como assim? O que há de errado?

– Ela disse que se sente mal por fazer você vir aqui, só por causa dela. Que ela…

– Que ela?

– Eu não gosto de falar sobre isto, sabe, eu discuti com ela quando ela me pediu para vir aqui. Ela fala cada coisa… Mas ela e esse tal de Ralph…

– Ralph quem?

– Ah, você não sabe? Aquela menina, tola, fica olhando como uma boba para este cara e ele nunca vai realmente dar bola para ela… Mas fazer o que, ela é assim… Quando cisma com alguma coisa dentro da cabeça dela, não muda mesmo.

– Sobre o que você está falando?

– Você está confuso, não é? Ela pediu para dizer que não virá mais aqui, nunca mais, para você esquecê-la e seguir sua vida. Eu sinto muito – John olhava confuso para Kitsune. Sem saber o que responder, baixou a cabeça e nem percebeu quando Kitsune foi embora.

Kitsune andava pelo Campus. Ela passava por todos os estudantes, funcionários e professores, mas nenhum olhar se dirigia para ela. Observara por mais uma hora o rapaz. Ele parecia muito triste. Sentia pena dele. Ele parecia bem legal. Bem diferente do egocêntrico Ralph. Era um grande erro que Rannie fazia. Mas fazer o que? Ela se dirigiu para o quarto de Rannie, sem que ninguém a notasse e entrou. Rannie dormia na cama, vidro de remédios abertos e marcas de lágrimas no rosto. Kitsune se aproximou e beijou o rosto da menina adormecida e disse:

– Não se preocupe irmãzinha, eu vou tomar conta de você…

 

John voltava para casa como se estivesse perdido. Não olhava para os lados e dava passos incertos. Mal conseguia enxergar a frente dele. Tudo parecia estranho, sem sentido. O que acontecera? Ele não entendia. Como falar com ela? Como localiza-la?

Sem perceber, ele entrou em uma livraria.

Lá dentro, ele se sentiu ainda mais perdido. Do lado de fora, a livraria parecia uma simples porta de garagem, cuja entrada mal dava com espaço para se passar, tampada com uma placa “Compro livros velhos”. Mas o interior da livraria parecia ser bem maior, com vários livros e várias estantes. Um grupo de cinco pessoas discutia calorosamente segurando um velho e empoeirado livro, em um canto um rapaz magro e alto, lia solitário. Atrás do balcão, uma mulher com a face rosada, um grande nariz achatado, bem gorda, com pequenos olhos negros olhava para ele. Ele se sentiu tonto, colocou a mão na testa e olhou para baixo.

Uma espiga de milho estava no chão. John se abaixou para pega-la…

…A Espiga abriu os olhos, esticou as pernas e os braços e saiu correndo gritando. Aquilo foi demais. John percebeu que tudo explodindo ao redor dele, uma explosão de cores…

…Imagens de caminhos surgiram na mente dele. Todos os caminhos que percorrera até agora pareciam na sua mente, bem mais acessíveis…

…Ele podia ver onde ele estaria nos próximos minutos…

…Ele se lembrou de todas as histórias que contara e ouvira…

…Começou a tremer, quando começou a ver caminhos e locais onde jamais estivera…

…E a pensar em histórias do nada…

…E tudo ficou negro.

John se levantou. Em volta dele estavam as sete pessoas que estavam na loja até então. Sobre o ombro da mulher gorda, a espiga de milho, com olhos bem abertos. Ele olhou ao redor: a loja parecia agora bem maior. Os móveis eram mais antigos e podia ver muitos mais livros. A mulher gorda parecia bem mais rosada agora e os olhos menores. As roupas dela e de todos outros pareciam diferentes… Um dos presentes tinha chifres e pés de bodes, outro um nariz demasiadamente vermelho… Então olhou para si mesmo… As roupas que usava haviam mudado também: a camisa parecia feita de linho e era de manga comprida, um colete surgira do nada, com runas que nunca vira antes, usava um sapato engraçado, de ponta fina. Então olhou para baixo. Um rato-canguru do deserto africano estava ao lado dele. Parecia familiar e o rato falou

– Olá!

Todos os presentes riram da cara assustada de John, que se sentou novamente. Então a mulher gorda começou a falar…

O Fim de semana de John foi uma coisa de outro mundo, literalmente.

Ele foi levando por toda parte da cidade, mas uma cidade que ele não conhecia antes. Eles explicaram para ele tudo e ele entendeu bem além. Entendeu o que o rato-canguru era uma chimera chamada Fidge, criada pela imaginação dele e que tinha  força o suficiente para existir. Era ela quem roubava uma ou outra coisa e colocava na sua bolsa dele sem que percebesse. Ele entendeu que palavras como glamour e dreaming passariam a fazer parte da vida dele. Que Eshu e Changeling também. Ele havia achado um mundo que havia imaginado. Era real (e ao mesmo tempo não), era algo…

Então ele se lembrou dela…

– Você acredita mesmo em sonhos? – Ele havia perguntado enquanto ela folheava para o dicionário.

– Algumas vezes tenho alguns, que acontecem, sabe. Não ria de mim, sério…

– Eu não estou rindo. Eu gostaria de ser assim, mas meus sonhos são estranhos… nunca imaginei que eles fossem acontecer. Mas eu tento lembrá-los, aí eu conto para todo mundo, mas são muito estranhos, não para mim…

– Eu gostaria… mas nem sempre é assim… sonhos se despedaçam facilmente… as pessoas em volta da gente não nos ajudam… você não pode se esforçar por eles, imagina, dói muito quando eles não acontecem…

– Mas você deve se esforçar, senão de que vale a pena tê-los? É um risco, mas imagina como seria boa, a recompensa… – Ela balançou a cabeça enquanto ele falava. – É sério… Comigo todos os sonhos poderiam acontecer…”.

– E como? – Ela perguntou. Parecia ansiar pela resposta.

– Eu não sei, só sei que poderia.

– Como confiar nisto? Como viver com isto? Você precisa ter certeza de algumas coisas…- E ele havia sido obrigado a ficar em silêncio, mas agora ele podia dar uma resposta! Ele sabia como. Ela só precisaria acreditar nele e ele poderia fazer o que ele desejasse. Só precisava achá-la. E agora ele sabia como, ele era um Eshu…

Na segunda seguinte ele estava na loja novamente. Ainda não havia aprendido tudo, mas não podia deixar para depois. Sentia que devia ajudá-la naquele momento, antes que fosse tarde demais. Ele nem bem chegou e ela saiu da loja.

Ela estava nervosa e um pouco envergonhada. Abaixou a cabeça andava muito vagarosamente para longe da loja. Ela percebeu que ele sorria e se aproximava dela. Ela queria correr, gritar, bater. Mas não nele.

Ele viu os pequenos olhos dela se embaçarem, sorriu e se sentou, no mesmo lugar que sempre se sentavam. Ela hesitou, mas sentou também.

Os dois conversaram. Ela não falou nada de Kitsune, nem ele perguntou, mas presumiu que as duas haviam conversado, já que ela o chamava de John. Ele não perguntou o que acontecia, pois ela evitou o assunto desde o começo. Na hora de se despedirem:

– Eu não entendo… Eu tratei você deste jeito…E você aqui está novamente…

– Eu não me importo. Existem muitas coisas possíveis, você nem imagina…

– Mas você sabe, eu não posso vir aqui sempre. Você devia deixar-me de lado.

– Por quê? Algum motivo além do meu tempo? – Ele perguntou rispidamente, ao  imaginar o que Kitsune havia falado sobre o outro rapaz – Eu não tenho muito mais a fazer mesmo…

– Não, você não deve… – Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela correu, sem olhar para trás. John ficou ali parado estarrecido, sem saber o que fazer.

Depois de alguns minutos ele conseguiu sair andando, meio que sem direção e sem saber o que fazer. Assim que dobrou a esquina, Kitsune estava vindo na direção contrária. Ele acenou, um pouco aliviado, pois o menos com Kitsune, ele poderia falar sobre ela.

Ele voltou para a livraria mais uma vez. Lá dentro a mulher gorda, na verdade chamada de Oleam, lia. Ela franziu ao vê-lo chegar.

– Mas o que há? Eu sinto muito calor vindo de você… – Oleam se preocuava com o recém chegado e sentia uma energia emanando dele, quase banal, que parecia congelar o local. Ela precisava saber o que era e começou a conversar com John, e ele nunca achou tão fácil colocar para fora tudo o que ele sentia.

Depois de ouvir os conselhos de Oleam, John decidiu não desistir. Mesmo sem saber o que fazer, sabia que era importante provar que ele estava certo e o que era real o que sentia. Não era somente para ela que ele fazia isto. No dia seguinte voltou para o campus, não para a loja, mas começou a andar aleatoriamente pelo lugar… Deixou que a memória guiasse seus passos, mesmo sem ter visitado o local antes. Ele estava dando volta em um prédio quando a viu, sentada embaixo de uma árvore, sozinha. Ela tinha um livro sobre o colo, um caderno e uma caneta ao lado. Ela cantarolava olhando para o alto. John pode ouvir a voz fina, sem energia… Ele se aproximou silenciosamente.

Ela só o ouviu quando ele estava ao lado dela. Limpou rapidamente as lágrimas no rosto e olhou para o lado. Quase sussurrando falou, sem conseguir fita-lo:

– O que você está fazendo aqui… como…

Ele se ajoelhou do lado dela, passou suavemente a mão pelo rosto dela, limpando as lágrimas no rosto, então colocou a mão debaixo do queixo dela e levantou o rosto até conseguir olha-la nos olhos.

– Eu estava procurando você, tive a sorte de achá-la… o que há de errado? Por que você encontra-se aqui chorando

Ela fitou os olhos negros dele e não resistiu, pouco importava se a vissem assim agora, mais lágrimas não paravam… E eles conversaram durante a tarde toda. Conversaram sobre o futuro, passado, sobre sonhos, sobre pesadelos, sobre ambos e sobre o que mais viesse. E ela nunca se sentiu tão bem…

Ela havia se sentido terrível toda a semana, tentando concentrar-se apenas em estudar. Agora, sentia-se relaxada, apensar de ainda sentir-se culpada pela forma como havia o evitado.

Antes de ir embora, ele passou na loja para comprar algo para comer. Quando saiu viu Kitsune. Tão distraído pela conversa, com a mente vagando por entre sonhos e sonhos, que nem percebia que as outras pessoas pareciam não notar a presença dela.

– Olá…

– Oi, acabei de encontrar a Rannie – desta vez John havia tido o cuidado de perguntar o nome dela – ela está incrivelmente feliz… Nunca a vi assim… Oh, e posso ver pelos seus olhos que alguém mais aqui está incrivelmente feliz…

– Pode é? – John sorriu e contou como tudo parecia dar certo agora. Para John, todos caminhos estavam abertos.

Ele voltou lá no dia seguinte,  mas eles não conversaram muito porque Rannie tinha muito que estudar. Mas para ele havia sido o suficiente. E no outro dia, e no outro. E ela estava sempre lá.

O fim de semana passou e John não pode visitá-la, pois ele deveria ser apresentando a mais e mais lugares do mundo que ele jamais pensara ser real. Não que ele desgostasse disso: aprendia cada vez mais e conhecia mais lugares que poderia um dia mostrar para Rannie. Sentia falta dela, mas, tudo estava certo e não havia o que se preocupar.

Na segunda ele voltou à Universidade. Ele chegou em tempo de ver Kitsune saindo do alojamento. Ele a cumprimentou e perguntou onde estava Rannie. Kitsune olhou para o lado…

– Alguma coisa errada?

– Não… Ela está estudando…Com Ralph…

– Ah… Normal, né? – Ele falou sorrindo como se aquilo afastasse as preocupações.

– É, normal… Sabe como a menina é?

– Sim, ela gosta de estudar…

– Ela gosta de estudar com Ralph… – Kitsune estalou a língua ao terminar a frase.

– O quê? – A preocupação retornou.

– Ela, você sabe, esse rapaz… Eu não o sei o que ela vê nele… Mas você devia saber…

– Saber o quê, eu não estou entendendo…

– Ela está ali, atrás do prédio estudando com ele… – Kitsune nem terminou a frase e John saiu correndo o mais rápido que podia para contornar o prédio.

Ele dobrou a esquina  e viu Rannie sentada debaixo de uma árvore. Ela olhava para cima, com a face tranquila. Do lado dela um rapaz lia algo em um livro. John sentiu-se gelado… Mesmo aquecido pelo sol que iluminava toda a área, sentiu uma onda gélida vindo do rapaz. John viu-se obrigado a dar dois passos para trás. O rapaz levantou a cabeça na direção de John. John pode ver então, orelhas pontudas e olhos brilhantes, e sorriu. Atrás dele,  Kitsune sussurrava.

– Viu, este é Ralph. Ele um dos Autumn Fae…Um Dautain. – John se lembrou então das explicações que ele recebera, do maior perigo possível, Kithains que ,por uma razão ou outra, fugiram do dreaming e passaram a se alimentar do sonhar das pessoas e de outros Kithains. – Ele faz isto com ela, cada vez que você vem e a faz sonhar, ele aparece, e mesmo sem saber nada sobre você, faz com que ela perca a fé nos sonhos, não importa qual…

– Como, como você sabe isto?

– Eu sou uma quimera…  me criou, sem saber é claro. Meio que graças a você. Ela queria tanto continuar se encontrando com você… Conversando com você… Então eu surgi. Eu podia conversar com você e voltava para ela e então ela sabia de tudo que havia acontecido. Ela pensava que era apenas a imaginação dela, sonhos despertos. Era algo não consciente…

– Mas você sempre me ajudou…

– Não era bem assim. Eu sempre reagi de acordo com o que ela sentia no momento. E agora… Eu não quero morrer… – Kitsune disse com a voz cortada.

– O quê?

– Eu posso me manter viva enquanto ela ainda conseguir me sustentar… Mas ele tira pouco a pouco essa energia dela e ela mal possuí o suficiente para mantê-la. Eu não terei aonde me alimentar e estarei perdida…

– Mas como ele faz isto? Você…

– Eu não posso nem chegar perto dele. Oh, você não entende. Ele não fazia nada contra você. Agora que o viu, talvez tente. Mas antes, ele era somente atraído pela solidão e pelos sonhos que ela tinha. Ele tinha de ficar próximo suga-los. Ela jamais falou de você para ele. Ele a mantêm por perto, sem nada falar, usando, ironicamente, os mesmos sonhos que extermina, até que ela fique presa, mas sem receba mais nada em troca. Ele a faz pensar em um mundo simples, com um marido, filhos, casa, emprego, aposentadoria, TV a cabo e planos de saúde. E só isto. Ela fica lá…”Um dia…”. Mas nada acontece…

John se encostou contra a parede. Não sabia o que dizer.

– Mas se eu mostrar para ela, o que ela esta deixando de lado, uma opção… Ela vai pensar duas vezes. O mundo não sabe o que está perdendo. Não posso culpá-la por preferir isto aos sonhos. Mas quando ela descobrir o quão real eles são, ela vai mudar de idéia…

Kitsune sorriu. Mas a face dela não mudou. Havia um ar de derrota nela.

John passou a hora seguinte em um canto, isolado, talhando na madeira uma pequena figura.

Ele viu Rannie andando com um sorriso ligeiro nos lábios. Ele se aproximou.

– Olá…

– Oi… – Rannie não parecia surpresa.

– Venha comigo, quero conversar…

– Conversar o que? Eu… Tenho de pensar…Tenho o que fazer…

– Você sabe. Nós temos que conversar… Não é possível que pretenda deixar de lado tudo o que me disse…

– John…Eu não quero falar…Desculpe-me…Acho melhor não mais conversarmos…

– O que? Quer dizer que não significou nada…

– Não…Você me fez sentir muito bem. Obrigado. Você é maravilhoso. Nunca ninguém fez isto por mim. Eu agora posso…

– Pode ir?

– Posso tentar ser feliz do meu jeito, com o que eu realmente quero. Sonhos mais certos…

– Como assim mais certos? Aquele cara não é nada bom e não vai fazer você feliz, ele nem mesmo consegue entende-la…- Ela virou o rosto sorrindo, olhos sonhadores na direção em que viera, e aquilo foi o que mais feriu John.

– Sim ele vai, por que eu vou estar feliz com ele e por ele. E ninguém consegue me entender, nem mesmo você, John… – Ele se decidiu e tirou a figura que esculpira do bolso.

– Eu não sei o que dizer…

– Não diga nada, seja só meu amigo, por favor… Viva sua vida, ache alguém como você. Magoa-me muito isto, ver você triste…

– Eram sonhos…

– Não poderiam ser comigo, procure outro sonho, sonhos reais…

– Tudo bem… Aceite isto, eu fiz somente para você…- E ele lhe deu a figura. Rannie pegou a estátua e o poder do Dreaming invadiu-a. John acabara de encantá-la.

– O quê? – Ela olhou-o nos olhos e viu olhos negros que pareciam infinitos.

– Sonhos são reais, Rannie. Veja… Eu sei disso, eles existem. Você tem grande poder para produzi-los também… Eu sei que parece estranho, mas eu sou um Eshu. Um ser do Dreaming, que vive em um corpo humano. Junto, acredite é possível fazer com que o impossível aconteça…

– Não…Como? – Rannie tateava o espaço vazio diante dela. Os dedos rasgavam o ar e explodiam em cores brilhantes que faziam os olhos arderem.

– É só acreditar… Se você vier comigo, eu tomarei conta de você e saberei como fazer sonhos reais… Eu posso sentir, eu posso fazer você sonhar…

– Pare com isto! Por que você não faz isto por você mesmo, com os seus sonhos, não os meus!

– Eu posso, mas vai ser melhor se eu estiver com você. Graças a você eu pude descobrir isto, Saber quem eu era, dar sentido a toda minha vida antes…

– Não, não… Como isto é possível…Eu não…Eu não sou como você eu não posso, você não me conhece o suficiente, e olhe o que você é…Eu nunca poderei ser assim mesmo que queira…- E ela se virou correndo de volta de onde viera, a mão cobrindo o rosto, os pés tropeçando na calçada.

– Não, isto está certo! Não é assim!  Pessoas como eu precisam de pessoas como você – E ele correu atrás dela. Assim que virou a esquina do prédio, ele a encontrou abraçada,  chorando nos braços do outro rapaz. John sentiu o frio que emanava dali. Frio que fora suficiente para destruir o encantamento que fizera: a figura de madeira estava jogada no chão, sob os pés de Ralph.

– Rannie…

– Ei cara… Não sei que está acontecendo. Mas ela está chorando. O que você fez com ela? – Ralph colocou a mão na testa dela – Com febre. Deixe-a, você esta a magoando e machucando-a.

– Eu? …Não…

– Vamos lá. Ela não quer falar com você. Respeite isso.

“Por favor,…” John conseguiu falar, com o máximo de esforço. Ralph então colocou amistosamente a mão sobre os ombros dele.

– Vamos lá, cara. Deixe-a melhorar… Dê espaço para ela respirar. – O ombro de John queimava com o toque de Ralph.

John se voltou e saiu andando. Sentia-se perdido. Algo estranho passava na mente dele. Não entedia bem o que havia acontecido, sabia que havia perdido Rannie novamente e a última semana parecia um borrão na mente dele. Imaginava que isto era por causa da tristeza que sentia. Não sabia o fazer sem ela, não se lembrava de mais nada importante…

Ele foi andando,  sem se lembrar de nenhum caminho até se perder.

 

PALAVRAS FINAIS SOBRE FANCICS: CAMINHOS

A ideia principal deste fancic nasceu da intenção de fazer uma história “Anti-Freddie Prinze Jr.”. Você sabe, aqueles filmes tipicamente americanos sobre jovens em que a mocinha é sem graça e o Freddie Prinze Jr. por um motivo babaca qualquer, passa a se relacionar com ela, deixa de ser um babaca e descobre que ela é linda. Final feliz. Nada mais banal do que os rituais da maioridade do baile de formatura.

No mais, a personagem principal é um pouco baseada na personagem dos Novos Mutantes, Rahne Sinclair. Ao invés de virar uma loba, ela é acompanhada por uma quimera que, por causa dos mangas, é uma raposa. De qualquer forma, ela se parece com muitas outras personagens que criei.

Não ficou engraçado. Talvez até patético e um pouco melodramática e, por causa do original que deveria satirizar, um pouco juvenil.

No mais, Eshus são ótimos personagens para uma história. O poder deles pode não ser um bônus para o jogador, mas para o narrador, você se livra de toda e qualquer necessidade de criar uma cadeia de causas e efeitos para levar o personagem até onde a história está acontecendo.

É claro que isso é bem imaturo: uma função do novelista é exatamente criar essas cadeias de causas e efeitos para ligar personagens em uma trama de forma a ser aceita naturalmente pelo leitor e nada indica que o poder do Eshu excluiria a existência desta cadeia. O destino pode funcionar assim.

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