Marianne: o rei virou rainha

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A cidadezinha de Elden, riscada por longas ruas curvas e iluminada por um farol distante, pode parecer familiar demais e não é por acaso: a série francesa Marianne constrói seu cenário principal se apropriando do imaginário que caracteriza o terror gótico americano e seu principal representante contemporâneo: Stephen King. A cidade é quase uma Castle Rock e o farol lembra a marca da produtora de mesmo nome fundada por Rob Reiner nos anos 80’s e que é, de certa forma, grande responsável pelo resgate das adaptações do autor, que desde O iluminado amargou uma sequência de fracassos de público e crítica.

A história também tem similaridades com outros trabalhos de King, mais especificamente com A Metade Negra, ao seguir uma escritora de livros de terror de sucesso, Emma Larsimon, que decide dar fim, após dez anos, à série de livros da sua principal criação, Lizzy e a bruxa Marianne. Acontece que Marianne não era uma criação ficcional de Emma, mas sim um pesadelo recorrente que a perseguia na infância e escrever foi a forma como conseguiu encontrar paz e sono. Bastou anunciar o plano de encerrar a carreira da bruxa para que uma amiga de infância apareça, informe que Marianne exige outro livro e cometa o suicídio. Pronto, deixa para Emma retornar para Elden a fim de mergulhar no mais legítimo Gótico Francês com gosto americano.

Um escritor conhece esse medo de ser incapaz de se livrar de uma criação popular e de ficar confinado a um gênero. É o ponto de partida para outro medo de todo escritor: os fãs possessivos que demandam obras da forma que querem, invadem a privacidade e no fim, querem ditar o rumo do que será escrito. Outro medo é de ver sua obra usada por outros e com objetivos com os quais você não concorda. Enfim, medo pior ainda e de se submeter às pressões externas e perder sua voz ou de não saber como será a sua próxima criação. Perto destes medos, o famoso bloqueio é medinho de criança.

Tudo isso acontece com Emma na medida em que Marianne usa de sonhos e invade a realidade para aterrorizar os amigos e a família da autora (e assim, ela é uma versão feminina de Freddy Krugger ou de Pennywise, inclusive com uma rima infantil cantada por crianças) e conseguir seu objetivo final. A série consegue se prolongar por oito episódios usando seu tempo para passear pelos poucos personagens principais (a maioria mulheres, inclusive se considerarmos o final, a série é essencialmente feminina) e fazer piada, mas não no estilo terrir que dominou o horror hollywoodiano na segunda metade dos anos 80: o riso é provocado para quebrar a tensão, não diluí-la, portanto o monstro é sempre enervante apesar de sorridente.

Há clichês bem usados e alguns que vimos várias vezes: a mudança na velocidade das cenas já foi vista em filmes de horror atuais, apesar de ajudar a camuflar o orçamento baixo da série; os flashbacks são bem usados para manter o ritmo e a temática literária com o uso de páginas de um livro sendo passadas velozmente, mas também servem para trazer cenas 15 anos no passado com uma versão adolescente dos protagonistas que revelam o passado de Emma. O melhor truque da série é ignorar as linhas retas: mesmo corredores das casas são filmados por ângulos e com objetos e portas abertas de forma a nunca mostrarem algo reto. Tudo é tordo e o monstro, ao invés de se esconder nos cantos, se esconde aonde há algo fora de lugar.

O gótico teve origem no continente europeu e sua influência no gênero Terror é o que faz com que tantas histórias evitem as grandes cidades – símbolos da racionalidade iluminista – e procurem as propriedades rurais e vilas – símbolos do passado e crendice popular – para causar medo. É justo, medo funciona durante o sono da razão e escritores têm tanto medo quanto qualquer um. Escritoras, tão importantes na gênese do gênero gótico, têm muitos medos para compartilhar, que o dia Mary Shelley.

João Camilo de Oliveira Torres – Quem quiser me ouvir falando de séries e filmes baseados em HQs, basta clicar aqui e acompanhar o X-POILERS!


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