Virginia Woolf, em um dos seus ensaios, descreve uma cena no dia do Juízo final em que Deus se depara com um grupo de pessoas carregando livros debaixo do braço e comenta que era incapaz de recompensá-los com qualquer coisa, pois, sendo leitores, já tinham tudo. Talvez Deus estivesse um pouco desinformado e aquele fosse apenas um grupo de leitores se reunindo para uma próxima reunião de um clube do livro e assim, insatisfeitos e querendo algo mais.
Clubes de leitura funcionam negando a mística do leitor solitário, essa imagem que se construiu ao longo dos séculos, que fazia do hábito de leitura algo excepcional e em nada integrado o cotidiano. Tempos mudaram, espaços de leitura como as Bibliotecas são espaços abertos, que permitem o contato entre leitores e isso por um motivo bem simples: formar um leitor não é feito por meio de uma ação individual ou miraculosa, tal como sacar a espada na rocha, mas por meio de um processo constante, de trocas e incentivos, que se forem suspensos, podem transformar um leitor em alguém que apenas se lembrará de livros na hora de comprar o material escolar para os filhos. Vai continuar usando a leitura para os tantos fins que ela tem, mas não para a literatura, quando essa é aquela coisa artística e complexa, que por isso mesmo, falhamos em definir em duas linhas.
Na semana passada, fui conhecer como funciona o Clube de Leitura Leia Mulheres Belo Horizonte, que se reuniu para discutir o livro “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola” de Maya Angelou. É claro, que depois da minha leitura, já tinha na cabeça impressões sobre a obra.
O livro tem aquela cara de uma obra em que um poeta decidiu escrever em prosa. Há uma constante sensação de leveza e agilidade na linguagem, evocando uma oralidade, não só parte da ancestralidade Africana, mas da fantasia dos contos de fadas. Existe uma magia ali, a linguagem se transformando como por encantamento, como acho que gostaria Ítalo Calvino, que permite uma mudança natural dos momentos de humor para momentos edificantes ou repulsivos, como se a personagem narradora da história construísse uma fuga daquela realidade, mas isso se revelasse impossível nos momentos finais. Por mais realista que seja, é uma autobiografia, a obra parece jogar com o fantástico constantemente e parte dessa impressão vem da mistura de vozes da narrativa em primeira pessoa: tem horas, que a narração é da Maya Angelou criança, de 8 a 16 anos, que, a despeito das condições de vida, é imaginativa (por isso talvez a escolha pelos contos de fadas) e desconhece tantas coisas que acontecem ao redor como também seus significados. Mas algumas vezes, a Senhora Maya Angelou entra na narração com posições que apenas os muitos anos de vida teriam sido capazes de produzir. A própria ordem cronológica parece difusa e o contraste dessas vozes permite um olhar mais crítico já que parte da própria autora. Ela nunca é indulgente consigo mesma.
Não é uma questão de me identificar com a personagem, já que a vivência dela é única e completamente diversa do tipo de vivência que me define, mas de acompanhar aquela experiência, pois Maya Angelou é uma narradora, daquele tipo que Walter Benjamin acreditava estar em extinção. É perfeitamente possível entender a lição da infância e da formação da adolescente Maya Angelou como uma lição sobre a importância da palavra: seu poder, seu uso e sua arte. Seja pelos livros (que como parte da cultura europeia cercam a formação da Maya Angelou leitora), pela música religiosa, ou pela oralidade, que tem importância ainda maior, já que a escrita tem “donos” e ela estava à parte deste círculo de poder. É uma obra que cria uma fantasia (ou o desejo de), mas nos puxa com força para a realidade, já que o escapismo é uma forma pobre de usufruir a fantasia e a arte, e é muito melhor quando esse poder é usado para enriquecer o que é verdadeiro.
No fundo, toda fantasia e poesia não importariam tanto se não os personagens não fossem profundamente humanos com dramas e reações humanas. Quando pensamos no valor (pecuniário, estético, histórico) da palavra ou de sua manifestação escrita, o livro, temos sempre de lembrar que ele, sendo um elo entre duas humanidades, vale tanto quanto somos capazes de valorizar o escritor que o criou e o leitor que o abriu. Sem ambos, nada feito. Nenhuma sociedade valorizará a palavra literária se for incapaz de valorizar o ser humano em primeiro lugar.
Se eu não me identifiquei com a personagem, o mesmo não é verdadeiro para outras leitoras. E aí entra a importância da troca que o Clube de Leitura permite acontecer. Afinal, o leitor que estou falando não é apenas quem passa os olhos pelas palavras de um livro, mesmo que lentamente, mas quem pode fazer uso do que foi lido, passar adiante aquilo e refletir. E foi andando de volta para casa que uma questão levantada sobre a autora, em como, apesar das tantas desgraças que aconteceram, ela sobreviveu?
Ela é uma lutadora. O boxe é uma das imagens utilizadas no livro para mostrar essa luta constante, a necessidade de vencer, e um dos grandes praticantes da oralidade cotidiana foi um boxista afro-americano: Muhammad Ali. É dele uma frase, deveria ser chamada de verso, que lembrei e sintetizaria o uso da linguagem em “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”: Voe como uma borboleta, ferroe como uma abelha. É exatamente isso que Maya Angelou faz: vai nos golpeando, nos leva até as cordas, round após round, para nos nocautear quando nos diz: Esta sou eu aos dezesseis anos.
Mas já era tarde, o encontro já tinha passado e era ordem de continuar, pois é preciso trabalho para continuar sendo um leitor.
João Camilo de Oliveira Torres
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