Uma anedota conta que Dante (existe uma vasta tradição de anedotas sobre Dante) passeava quando ouviu um ferreiro recitando seus versos, mas com o ritmo errado, e decidiu ficar repetindo ao lado do ferreiro, até que este acertasse a cadência. Apesar de simples, podemos deduzir deste episódio que Dante conseguia distribuir as migalhas do Banquete, a crença de que a poesia foi feita para ser recitada e de que ele era bem ranzinza.
Essa imagem de Dante se difundiu com a ajuda da representação do poeta feita por um contemporâneo (assim acredita-se): um afresco de Giotto. Dante é jovem, mas sério, não sorri, apenas fita para frente, determinado. A imagem mostra o Dia do Julgamento, mas a partir daí, Dante vai ser quase sempre representando sério, lábios cerrados, sem sorrir e com o olhar firme voltado algum ponto futuro. Não importa se o objetivo da Divina Comédia fosse o passeio até o Paraíso e que nele encontrássemos momentos sublimes, Dante acabou, de certa forma, restrito ao observador das almas condenadas no Inferno.
É bem fácil aceitar que Dante era um poeta sisudo, empenhando em corrigir alguém que talvez nem soubesse ler, com a autoridade de quem condenara ao Inferno seus contemporâneos. Afinal, poesia é coisa séria, elevada e escrita por poetas abnegados, sofredores e miseráveis.
Porém, Dante chamou sua obra de Comédia e tendo conhecimento de causa, sabia que humor não é apenas contar piadas e provocar gargalhada. Estão presentes o jogo com a linguagem, com as emoções, imagens e símbolos que constroem um poema ou um livro cheio deles.
Roland Barthez atribuía ao desejo de escrever causado pelo texto que está sendo lido como o ponto de partida para a criação da crítica literária, e sabemos que faz parte de quase todo jogo a vontade de encontrar um parceiro, ou parceiros, para jogar. Quando um poema, uma frase qualquer, uma história inspira outro poema, outra história ou sabe-se lá, uma novela de mil páginas; algo de relevante, que não precisa ser batizado por nenhum termo técnico, está acontecendo.
Quando comprei o “Dicionário de imprecisões” de Ana Elisa Ribeiro, publicado pela Impressões de Minas, fiz o que sempre fiz ao comprar um objeto controverso, de forma, textura, tamanho e natureza variáveis novo e abri na página 61 (uma das duas) e li o (verbete, poema, não sei dizer qual sem um dicionário para consultar) Linha: dessas coisas que podem ser várias.
E de pronto, por que trocadilhos acontecem antes dos lábios sorrirem, pensei: verso o outro lado desta página. Não quero dizer que era algo original (e considerando a quarta capa, não era) nem preciso refletir se tem algum valor, o que importa é que estava jogando.
Dicionários (e suas irmãs mais cheias de pompa, as Enciclopédias) têm aquele ar de coisa séria, de professor que leva o guarda-chuva para sala de aula mesmo em dias de sol, de autoridade máxima. Não se costuma pensar em ler dicionários (ou enciclopédias) como algo divertido, como entretenimento, que é a leitura de um destes livros que ainda podem ser escudados pelo “li rapidamente e já esqueci”. Não, verbetes são feitos para serem lembrados, pois são informações que devem ter alguma relevância ao menos momentânea. Mas nem sempre foi assim nem será assim no futuro: essas coisas se dissolvem no ar com tamanha facilidade, deixando de ser fato para ser fantasia, que é divertido consultar este ou aquele significado sem intenção nenhuma de jogar palavras-cruzadas (esse jeito desordenado de listar palavras).
Desorganizar e remontar a forma, as imagens, símbolos, palavras de um dicionário é um exercício de humor. Acho improvável que a poeta não tivesse nos lábios um sorriso (mesmo que meio ou apenas nos cantos) e quem sabe olhos abertos de surpresa (já que poetas são muito bons em surpreender-se) enquanto criava esse livro, independente da seriedade dos temas escolhidos (basta ler a página 99 para saber que esse poema, verbete é sobre coisa bem séria e séria aqui quer dizer que temos de dar consideração e valor).
Talvez, eu vire um velho ranzinza como o Dante das pinturas, mas foi o humor que provocou o desejo de fazer um trocadilho e escrever aqui sobre o “Dicionário de imprecisões” de Ana Elisa Ribeiro. Acho que era inevitável, já que ainda tenho a mania de ler enciclopédias e outras obras cheias de verbetes, de A a Z, ou às vezes, de Q a M, uma mania que deve se tornar cada vez menos comum no mundo do Google e o outras plataformas de pesquisa. Mas serei eu. A poesia saberá lidar com seus eventuais Giottos.
João Camilo de Oliveira Torres
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