E pensar que há um ano, Twin Peaks: o retorno acontecia. O pior da abstinência de Twin Peaks é a falta de séries que possam ocupar o mesmo espaço. Legion durou muito pouco e na verdade, é a única série até o momento, que parece ter dialogado com a inovação de linguagem promovida por David Lynch e movido algumas casas no tabuleiro. As outras parecem ainda estar em 2016 por melhor que possam ser.
Uma das coisas mais complicadas de Twin Peaks é o tamanho. A primeira e segunda temporadas têm 30 episódios (O piloto e mais 7 episódios na primeira temporada e 22 na segunda). Além disso, temos o filme Os últimos dias de Laura Palmer e o filme especial para a caixa comemorativa de 25 anos da série, Twin Peaks: o Mistério, e é claro, os 18 episódios de Twin Peaks: o retorno. São quase 53 horas. Espanta qualquer um.
Mas tem jeito de facilitar essa maratona. É isso que vamos fazer aqui por sugestão da companheira de X-poilers, Karin: vamos responder o que assistir quando se trata de Twin Peaks.
Mas antes, uma contextualização:
Quando Twin Peaks foi ao ar pela primeira, vez em 1990, a televisão era outro mundo, quase sempre separado de Hollywood e do cinema. Profissionais de um meio raramente cruzavam a linha entre uma e outra e a qualidade era díspar. David Lynch havia acabado de receber sua segunda indicação ao Oscar por Veludo Azul e a era adorado pela crítica, ainda que não fosse muito popular. Ele resolveu cruzar a linha e com o amigo Mark Frost criou uma novela centrada no assassinato de uma jovem, Laura Palmer. O mistério permitiria que eles explorassem os personagens pela cidade fictícia que também é um “personagem”. A obra se tornou um enorme sucesso, mas o impacto maior somente seria percebido anos depois quando outros astros de cinema e diretores famosos passaram a investir na televisão e os orçamentos cresceram, melhorando a qualidade da produção televisiva consideravelmente. Foi Twin Peaks quem abriu as portas para Arquivo X, ER, Game of Thrones, Os Sopranos, Breaking Bad e tantos outros.
Mas o sucesso da série mexeu com a cabeça da ABC, que esperava a resolução do mistério ao final da primeira temporada e começaram a exigir que Lynch e Frost revelassem quem era o assassino. Eventualmente, eles aceitaram e no meio da segunda temporada, entregaram a resolução do mistério. Além disto, Lynch se afastou para cuidar da finalização do filme “Coração Selvagem” e a série degringolou.
Sem o mistério principal, foram obrigados a usar um novo antagonista para o Agente Cooper, investir no mistério tipo X-files do Black Lodge e trazer personagens que não acrescentaram muito para a série, por exemplo, pressionados pela atriz Lara Flynn Boyle, namorada de Kyle MacLachlan na época, que sentia ciúmes do par romântico formado pelo Agente Cooper e Audrey Horne (o único par romântico na verdade, já que era uma paixão idealizada por parte de ambos e nunca consumada), pressionou até que criaram um outro par para ambos personagens, sob a desculpa que um homem integro com Cooper jamais se envolveria com uma adolescente como Audrey.
Mas é essa integridade, já que Cooper nunca incentiva as fantasias de Audrey, apesar de ser o único adulto que presta atenção à jovem (negligenciada pelo pai, que é um gangster), que fazia do par algo interessante. Audrey é uma sonhadora e Cooper está tentando constantemente salvar a inocência do mal e isso é algo importante para entender o final de Twin Peaks: o retorno.
A audiência percebeu que as “corujas não eram o que pareciam”, ou seja, aquilo era Twin Peaks e não era e a série foi perdendo pontos e a ABC convenceu Lynch e Frost a retomarem a série na terceira temporada. A dupla preparou os dois últimos episódios, decidindo se livrar de tudo que não era interessante e deixar uma série de cliffhangers para trabalhar na terceira temporada. Mas a ABC decidiu acabar a série que por muito tempo, terminou com o destino de vários personagens, especialmente do agente Cooper, indefinido e vários fios soltos e a famosa promessa feita por um espírito de que nos veríamos novamente em 25 anos.
Ao mesmo tempo, Lynch lançou o filme Os últimos dias de Laura Palmer, mas é na verdade uma prequel que não elucida muito a trama da série, ainda que possamos conhecer Laura Palmer pela perspectiva da mesma pela primeira vez. A metade inicial do filme mostra um pouco da investigação do FBI e da unidade especial que Cooper fazia parte e a segunda é uma história de horror que mostra como Laura Palmer foi abusada desde e criança e ficou em tamanho desespero que acabou preferindo morrer – ainda que não tenha se suicidado – para se libertar do que continuar aturando aquilo.
Quando o aniversário de 25 anos se aproximou, uma caixa com todos os episódios remasterizados e o filme foi lançada com um bônus especial: Lynch editou e recriou um novo filme com cenas deletadas do “Os últimos dias de Laura Palmer” que, se não impulsionam a história para frente, parecem preencher algumas lacunas com um pouco de massa de cimento. Mas esse trabalho parece ter impulsionado a criatividade de Lynch, que procurou Frost com a ideia para uma nova temporada. Depois de conseguirem uma distribuidora (e de algum drama online para garantirem o total controle criativo), entregaram Twin Peaks: o retorno.
Nesta nova série, os dois reconhecem que 25 anos passou. Não é uma mera recriação saudosista do passado, mas uma nova história, explorando uma nova dinâmica e dialogando com a produção televisiva dos últimos anos. Os personagens estão lá, mas na sua maioria, são apenas ecos do passado que preenchem a história dos dois personagens que importam e que na verdade, só aparecem nos episódios finais: Agente Cooper e Laura Palmer. Twin Peaks mesmo é uma mera coadjuvante, quando na série original era a “personagem” principal.
O Guia
Apesar dos dois filmes serem uma prequel e na verdade, a cronologia interna da série ser maleável, eu recomento começar com o Piloto (cuidado com o Piloto europeu, que incluiu certas cenas com o Bob, que elimina toda história sobrenatural de Twin Peaks). O motivo é simples: o Piloto é um admirável exercício de apresentação dos personagens e de seus “papeis” na cidade e o relacionamento deles com Laura. Como se abrisse um mapa em que, ao invés de mostrar o nome das ruas, mostrasse as pessoas que frequentava o local, Lynch apresenta a cidadezinha do interior que na superfície é calma e pacata, mas no fundo (bem no fundo) é cheia de mistérios e sombras. Se você não captar o humor de Twin Peaks no momento em que o Agente Cooper aparece, pode ser que a série não seja para você. Mas lembre-se, ela foi feita em 1990. Lynch inovou levando para televisão profissionais com quem trabalhava, não apenas atores e o compositor Angelo Badalamenti, mas parte da equipe técnica, mas o tempo passou para todo mundo.
Os oito episódios da primeira temporada são fundamentais. Nela, vamos seguindo o Agente Cooper criando laços com os habitantes de Twin Peaks. No melhor estilo das novelas de detetive, descobrimos que todos são suspeitos e todos amavam Laura Palmer. Ela também está presente, ainda que ausente, sendo construída como uma obra colaborativa através da visão dos personagens. É também intrigante como os elementos sobrenaturais vão surgindo lentamente na série, apenas sugeridos, como a Mulher do Tronco ou a famosa e acidental introdução do personagem Bob. O ritmo de Lynch é lento de maneira deliberada. Você não conseguiria absorver tantos personagens estranhos, mas cheios de vida, de outra forma. Saboreie como o Agente Cooper saboreia uma boa xícara de café. Se chegar ao fim do episódio e ainda não se interessar pela série, desista aqui. A série realmente não é para você neste momento e terá gasto apenas umas 9 horas.
A segunda temporada quase matou Twin Peaks e apresenta alguns dos piores momentos da série, mas ela começa mantendo o mesmo ritmo. Os primeiro nove episódios revelam quem matou Laura Palmer. Até o momento, todo elemento sobrenatural pode ser explicado como parte da loucura de um ou outro personagem ou como representação da intuição do Agente Cooper. Até o fim (e isso também acontece no filme Os últimos dias de Laura Palmer) não conhecemos a natureza verdadeira da relação entre Bob e o assassino. A revelação é chocante. Nós episódios seguintes o assassino é capturado e a série perde o fio da meada.
Simplesmente não assista os episódios 10 até o 20. Leia a sinopse em algum lugar. Twin Peaks perdeu complemente o espírito e de uma sátira às soap operas passou a ser exatamente uma novela, mais voltada para o dramalhão barato. Laura Palmer foi relegada a um pano de fundo. Basicamente acontece o seguinte (não se importe: isso tem apenas alguma importância como apenas algo que aconteceu e não para a série em geral): Donna descobre o diário secreto de Laura Palmer. General Briggs revela que trabalha para o exército investigando estranhos acontecimentos em Twin Peaks (pense em Arquivo X) e o auxiliar de xerife Hawk revela para Cooper sobre histórias de Twin Peaks a respeito de uma dimensão espiritual. O antigo parceiro de Cooper, Windom Earle foge da prisão e vem para Twin Peaks em busca de vingança e do conhecimento sobre o Black Lodge. Earle fazia parte da equipe responsável pelo projeto Blue Book e havia assassinato a esposa, com quem Cooper tivera um caso. É isso.
Episódios 21 e 22 marcam a volta de Lynch. O episódio 22 ficou famoso pelos inúmeros cliffhangers e, ao menos no 22, temos algumas da cenas mais famosas da série, diretamente ligadas ao destino de Cooper, a existência do Black Lodge e terão grande influência na trama de Twin Peaks: o retorno.
Em seguida temos os dois filmes. Eles não são essenciais para a trama em si, mas marcam uma grande mudança no que passaria a ser Twin Peaks: deixam de ser sobre quem matou Laura para ser um conto para a salvação de Laura Palmer. É notório que Lynch ficou impressionado pela atriz Sheryl Lee a ponto de criar uma prima de Laura para que a atriz voltasse à série. Podemos dizer que Lee conquistou essa mudança de rumo da série. Os últimos dias de Laura Palmer me é uma obra dupla, a parte sobre as investigações do FBI parecem não ter sentido (o filme Twin Peaks: o Mistério ajuda a dar algum sentido, mas o principal será completado no Twin Peaks: o retorno) e a parte sobre Laura Palmer é um tributo à personagem que foge completamente do humor negro de David Lynch, mas é sustentada pela atuação de Lee. Essencialmente, as informações que surgem no filme serão oferecidas novamente em outros pontos da série, mas eu diria que é importante para entendermos Laura Palmer. Já Twin Peaks: o mistério, não apenas é mais difícil de ser encontrado, como funciona mais como uma previa da última temporada e você pode perfeitamente deixar para assistir num dia futuro.
Chegamos a Twin Peaks: o retorno.
Sério, se você chegou até aqui você já sabe que não é possível deixar de assistir qualquer episódio desta série. Temos um dos grandes e mais originais diretores americanos por horas com total liberdade para fazer o que desejar. Ele não decepciona: nada de nostalgia pura e simples como J.J.Abrams, é uma nova história e Lynch faz uma série que dialoga com a televisão atual, não apenas as séries, mas o formato e a linguagem. Mas ela também é uma grande narrativa. Lynch sempre foi famoso por ser experimental e intuitivo, que tinha ideias fora do roteiro e usava erros para os filmes. Na obra de Lynch há espaço para o vazio, o silêncio e para coisas sem explicação. Mas Twin Peaks: o retorno não é uma série sem planejamento: Lynch consegue inclusive dar significado a coisas que aconteceram nos episódios ruins da segunda temporada (mas não precisa assistir). Ele chega a explicar algumas coisas (nem tudo, é David Lynch), mas é importante que ele parece sugerir que estranho não são as coisas que acontecem, mas o ser humano mesmo. Você pode assistir o episódio 8 umas três vezes. Não faz mal.
Antes de terminar, vale lembrar que Lynch é um mestre da metalinguagem. Twin Peaks é uma obra que desde os anos 90 faz uma critica à produção audiovisual e principalmente a forma como assistimos um filme ou televisão. Quem assistiu a segunda temporada de Legion poderá ter um gostinho de Twin Peaks. Mas fora isso, alguns filmes de Lynch fazem contato direto com Twin Peaks (sim, há um Lynchverse), especialmente A Cidade dos Sonhos, que foi inicialmente concebido como uma história da personagem Audrey Horne, mas como Lynch não tinha os direitos autorais, foi obrigado a mudar as personagens.
Agora vá assistir. Sem desculpas. Existe realmente um mundo pré-Twin Peaks e pós-Twin Peaks e somente você poderá criá-lo.
João Camilo de Oliveira Torres – Quem quiser me ouvir falando de séries e filmes baseados em HQs, basta clicar aqui e acompanhar o X-POILERS!
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